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Desça comigo a estrada mais perigosa do Mundo (relato)

A4

Aventura e emoção no downhill pela estrada mais perigosa do mundo, Bolívia

Estrada da Morte, Bolívia

História da estrada mais perigosa do mundo

A Estrada da Morte, em La Paz, na Bolívia, também conhecida como Death Road, La Carretera de la Muerte ou El Camino a Los Yungas, possui cerca de 80 KM de extensão, ligando La Paz a região de Los Yungas.

A fama da estrada se deve ao perigo de transitar por um estreito caminho que contorna um enorme precipício por 20 quilômetros, além do número assustador de acidentes em sua história que faz dela a estrada mais perigosa do mundo.

Ao todo, registram-se uma média de mais de 200 acidentes e 90 mortes por ano. O Chris, guia da agência que escolhi, me contou que, em toda sua história, a estrada já fez mais de 90 mil vítimas (época que era utilizada por carros e ônibus), sendo aproximadamente 20 mortes na prática do downhill. "Currículo" invejável para qualquer caminho dentre os mais perigosos do mundo.

Esse artigo é um relato da minha viagem feita em abril de 2014.

O caminho para La Paz

Durante minha passagem pela Bolívia com mais quatro amigos brasileiros, o Salar de Uyuni (deserto de sal) e o downhill na estrada mais perigosa do mundo eram os passeios mais desejados por todos.

Logo após visitarmos o Salar, rumamos em direção à La Paz, numa viagem de ônibus que durou aproximadamente 13 horas, varando a madrugada. O ônibus e a estrada não eram tão ruins como diziam os relatos que li, e em meio a algumas quicadas chegamos bem em La Paz.

La Paz

A cidade de La Paz é a mais populosa da Bolívia, então é possível imaginar o caos do trânsito. São veículos para todos os lados disputando quem buzina e invade mais a pista do outro. A buzina é mais utilizada que o cinto de segurança. É uma cidade bem alta, a 3.660 metros de altitude e suas casas são na maioria simples e ainda em tijolos.

Antes de ir tinha ouvido dizer que era uma Rocinha (favela famosa do Rio de Janeiro) grande, e realmente as casas, simples, se assemelham um pouco.

Fomos procurar um hostel e, depois de subir algumas ladeiras, resolvemos nos hospedar no Hostal Republica, próximo a Plaza Murillo.

O hostel era mais caro do que gostaria de pagar, algo em torno de BOB $ 60, mas por um quarto enorme só para nós, com banheiro privado, valia o preço.

A estada foi muito boa e deu pra descansar – o hostel não possui festas, mas o hostel em frente, Wild Rover, é estilo party hostel e permite a entrada de pessoas não hospedadas - sendo assim curtíamos lá e voltávamos para dormir tranquilos.

Um fato curioso que nunca havia presenciado é que na Plaza Murillo os pombos convivem muito próximos às pessoas. Elas os alimentam e os deixam subir em suas cabeças, principalmente as crianças. Perguntei-me: “será que eles não sabem o quanto este bicho tem doenças?”. Fiquei com a ideia de que os de lá são diferentes, ou que eles desenvolveram certas imunidades.

Deixamos as coisas, relaxamos e saímos para almoçar. Depois fomos ao famoso mercado de las brujas (Mercado das Bruxas), ótimo para fazer compras de diferentes artigos. Lá compramos alguns equipamentos e seguimos andando pela cidade.

Esbarrar com las cebritas no meio do trânsito garantiu a diversão da galera – elas estavam conscientizando a população a utilizar as faixas de pedestres e eram muito animadas.

Dando esta volta só comprovei o que vi em Uyuni: o povo boliviano é extremamente hospitaleiro e simpático, fazendo questão de entender o que falamos, mesmo arranhando um portunhol ruim.

Essa comprovação também foi inversa ao que li, de que eram grosseiros e tentavam te roubar. Em nenhum momento fomos hostilizados ou roubados – tão vendo só o que falo sobre o exagero das pessoas?

Minha bike para descer a Estrada mais perigosa do mundo
Minha bike para descer a Estrada mais perigosa do mundo - Instinto Viajante

Escolhendo a agência para descer a estrada mais perigosa do mundo

Fomos procurar agências para fechar o passeio pela estrada mais perigosa do mundo e não rodamos muito para encontrar uma que consideramos um preço justo frente aos equipamentos.

A agência foi a Vertigo Biking e quando estávamos assinando um termo que dizia que éramos responsáveis caso morrêssemos começamos a ver que era sério.

O downhill na estrada da morte começa ainda em La Paz e desce até Coroico, onde a agência oferece um almoço em uma pousada com piscina e tudo incluso, menos bebidas.

Eles nos pegam às 8hs e o retorno é por volta das 17hs. O valor foi BOB $ 400 (abril de 2014), o site hoje (fim de 2014) indica BOB $ 500 (contudo, fechar pessoalmente é sempre mais barato na Bolívia).

Posso dizer que a Vertigo cumpriu bem o serviço e me senti satisfeito com o auxílio e a qualidade dos guias e equipamentos.

As dicas que dou para fechar a agência são: escolher alguma com “cara” de profissional e que as bicicletas tenham suspenções hidráulicas. Caso contrário, pode fazer falta na descida. Normalmente a programação das agências dão o translado de ida e volta para o passeio, equipamentos, lanches, almoço, uma camisa Caneca do dev - canecas de programação e um cd com as fotos e vídeos do passeio.

Não deixe de levar:

  • óculos escuros, para proteger os olhos no caminho;
  • tênis e chinelo para trocar no fim, pois o tênis irá molhar;
  • e uma action cam (se tiver), os vídeos ficam irados.

Outras agências que fazem o passeio

Não as conheço, mas são famosas.

 Eu e meus amigos.
Eu e meus amigos.

O downhill na estrada mais perigosa do mundo

No asfalto

No dia seguinte, por volta das 8hs, a van da agência nos buscou no hostel e partimos para La Cumbre, a 4.640 metros de altitude.

Pelo caminho uma bela paisagem e a ansiedade só aumentando. O céu estava limpo e fazia calor (as vantagens de ir em abril).

Atenção: não leve folha de coca, no caminho existe controle de imigração e não será possível passar. Lá paga-se uma taxa de BOB $ 25 para manutenção da estrada. No nosso caso estava inclusa no pacote.

Estrada da Morte - Bolívia
Estrada da Morte - Bolívia

São 3.345 metros de altitude, distribuídos em 60 KM de percurso. O início é em uma estrada bem asfaltada que faz a bicicleta ganhar mais velocidade. Nesta parte da descida, a emoção não é menor, a adrenalina sobe nas dezenas de curvas que aparecem e é preciso atentar-se aos carros que vêm na faixa contrária.

A vista é sensacional e as montanhas fantásticas. Aproveitando as boas condições da estrada, eu abaixava a cabeça para ganhar ainda mais velocidade.

Durante este trajeto passamos por um acidente com uma pessoa de outra agência, e também tivemos o acidente de um amigo do nosso grupo, mas ambos foram só sustos, servindo apenas para nos lembrar de ter atenção.

Downhill na Estrada da Morte
Downhill na Estrada da Morte

Na verdadeira Estrada da Morte

Chegamos em um túnel onde fizemos uma parada e os guias passaram as instruções que dali para frente deveríamos ter atenção redobrada. Contornamos o túnel por uma estradinha de terra com pedras e começamos a sentir o que nos esperava, pedalando por uma estrada acidentada de chão batido com britas e pedras.

A estrada mais perigosa do mundo - Bolívia
A estrada mais perigosa do mundo, na Bolívia - Instinto Viajante

Este trecho é responsável pelos quilômetros finais do downhill, a verdadeira Estrada da Morte - a estrada mais perigosa do mundo - em uma trilha estreita de terra e pedras.

Ali nos reunimos estilo filme para conversarmos que todos deviam ter cautela, pois queríamos voltar pra casa vivos.

A estrada mais perigosa do mundo contorna um desfiladeiro profundo e alguns pontos possuem uns 3 metros de largura apenas. A descida é acompanhada por um guia na frente, um no meio e outro no fim do grupo. A van também nos segue carregando nossas coisas, equipamentos reservas e uma maca de imobilização para acidentes.

 Precipício na Estrada da Morte, na Bolívia - Instinto Viajante
Precipício na Estrada da Morte, na Bolívia - Instinto Viajante

Cachoeira na Estrada da Morte da Bolívia
Cachoeira na Estrada da Morte da Bolívia

No início, estávamos todos muito devagar, pela cautela, falta de conhecimento da pista e o medo da morte. Os guias faziam o caminho e íamos copiando suas manobras.

A paisagem é simplesmente sensacional, o desfiladeiro tem uma mata verde sem traços de degradação humana e as montanhas mostram imponência à nossa volta. Na estrada, passamos por lindas quedas d’água refrescantes e que dão emoção ao passar com a bike. Eu quase sofri um acidente enquanto admirava o entorno e uma curva apareceu de repente. Meu primo também passou pelo mesmo, quase caindo enquanto se deleitava no visual. Não vá de cabeça baixa todo tempo, mas cuidado com o deslumbre, o título de estrada mais perigosa do mundo não é à toa.

Ao longo da via, os guias realizam paradas para conferir as bicicletas, esperar todos e/ou fazer um lanche – são várias paradas. A essa altura nosso pelotão estava mais espaçado - os que estavam mais à vontade com a bike e a estrada seguiam mais próximos do guia da frente, enquanto os outros iam mais devagar. Nosso amigo que caiu no asfalto ia mais devagar ainda, pois aprendeu com o ralado.

Nas paradas é sempre bom checar se sua bike está OK. O caminho possui muitas pedras pontiagudas que podem danificar os pneus ou esvaziá-los e até mesmo soltar as rodas. Conheço bem de bicicleta e percebi que ambos ocorreram comigo. Em três paradas precisei ajeitar minha bicicleta com a ajuda do guia Chris.

Na primeira a bike estava com o pneu extremamente vazio e dificultava minhas curvas; na segunda minha roda estava solta, mais um pouco e poderia ter tomado um tombo; e na terceira tivemos que trocar um pneu furado.

No último reparo brinquei com o Chris que não chegaria inteiro lá em baixo. Seria uma presságio?

guia

O excesso de confiança

Eu segui mais próximo do pelotão da frente e já andava bem mais rápido. O trecho final da estrada é mais largo um pouco, diminuindo o risco e me incentivando a aproveitar o passeio com mais adrenalina. Em vários trechos me abaixei para pegar mais velocidade e sentir o vento no rosto naquele dia ensolarado.

[Intervalo para um parêntese]

Sempre digo que se me perguntarem o que sei fazer bem nessa vida direi, dentre pouquíssimas coisas, que sei andar de bicicleta.

Andei por toda vida, minha mãe diz que aprendi a andar com 3 ou 4 anos; andei de rodinha uma única vez e na segunda meu pai tirou as duas de uma vez e tomei meu primeiro tombo; desci morros enormes na minha infância e corri de cães; fui o primeiro da minha rua a aprender andar sem as mãos, vencer corridas e passar em quebra-molas assim; e, óbvio, caí diversas vezes, ralando joelhos, braços, rosto e perdendo unhas, aprendendo a evitar as quedas.

E o que isso tem a ver com a história? Tem a ver que quando fazemos algo bem e nos sentimos seguros acabamos ultrapassando o limite do medo, caindo no excesso de confiança. E isso não deve acontecer, ter medo é sabedoria.

[De volta ao downhill]

A "bendita" curva na estrada mais perigosa do mundo

Eu descia o trecho final em alta velocidade, chuto uns bons 30 KM/h. As curvas se desenhavam rapidamente na minha frente, vindas pela direita ou esquerda, e a emoção subia.

No meu consciente eu queria mesmo era acabar logo a descida e me jogar na piscina refrescante da pousada, almoçar e ficar deitado. Descia com emoção e sonhava com o descanso.

Em meio àquele misto de sensações veio o erro.

Entrei mal e muito rápido em uma das curvas, estava muito aberto e ia em direção ao desfiladeiro à esquerda – cair lá seria realmente grave. Uma puxada brusca para o lado de dentro da curva com certeza significaria um tombo, então fui virando aos poucos, enquanto dava leves toques nos freios para o pneu não virar nas pedras (os freios são a disco e freadas repentinas te derrubam), enquanto reduzia a velocidade.

A bicicleta quicava nas pedras, dificultando o controle, mas eu conseguia trazê-la. No canto interno da pista havia uma vala e como ainda estava muito rápido resolvi ir em direção à ela para usá-la a meu favor, reduzindo minha velocidade e me mantendo em pé ou com um tombo mais leve e, principalmente, vivo.

Como imaginei, entrei na vala e minha velocidade seguia reduzindo, mas não o suficiente. Tudo acontecia em uma fração de segundos.

Acidente na Estrada da Morte na Bolívia
Quando sofri um acidente de bicicleta na Bolívia, quebrei a clavícula, e não tinha um seguro de viagem internacional. =(

Foi então que a bicicleta travou de repente. Na hora não entendi o que houve, mas suponho que alguma pedra maior na vala impediu minha passagem.

A bike ficou presa e com o impacto fui arremessado por cima, me chocando contra o chão com violência. Levantei com o braço dolorido, mas apesar da queda forte, o sangue quente não me deixou sentir muitas dores.

Caminhei para pegar a bike e seguir em frente. Ela estava na vala, presa de ponta-cabeça, e quando tentei levantá-la vi que era mais grave.

Não sentia meu braço e não tinha forças, só então percebi minhas costas toda ralada e sangrando.

Sentei no chão e esperei pelo guia e meus amigos. O Chris passou e logo correu para me socorrer, os amigos e alguns turistas chegaram e todos aguardaram enquanto ele imobilizava meu braço.

Van estrada da morte
Van estrada da morte

Cai bem próximo do final, essa foi a frustração. Confesso que rolou um excesso de confiança e velocidade, mas foi um acidente, acontece. Dali até o fim estava meio zonzo e desci na van de apoio.

Paramos na pousada, comemos, descansamos e seguimos para La Paz. O banho esfriou o sangue e foi muito dolorido, mas nesse momento já estava relativamente bem e tudo que não fosse a morte estava bom pra mim.

fim

Hospital e má notícia

Em La Paz, a agência me levou até um hospital que eles eram conveniados e oferecia desconto. Era um hospital de muito alto nível em uma rua com vários outros.

Lá fiz uma radiografia e constatei a pior notícia do mochilão: minha clavícula havia quebrado em dois lugares e teria de retornar ao Brasil para fazer uma cirurgia de colocação de placa, pois viajei sem seguro saúde (clique para saber como contratar um bom e barato).

Voltamos para o hostel em clima fúnebre, com os amigos chateados e dando força. Ainda fomos ao aeroporto, mas só consegui um voo com custo razoável para o dia seguinte com escala em duas cidades chilenas e em São Paulo, e tempo total de 23 horas até o Rio de Janeiro.

Um martírio, mas no fim consegui chegar e enfim avisar a minha mãe, depois de internado, para ela não morrer do coração.

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Os aprendizados

Você está desistindo de descer porque leu nesse post sobre meu acidente na Estrada da Morte?

Se sim, te diria que é um grave erro.

Eu desceria de novo e foi uma das paradas mais fodas que fiz na vida. O que aconteceu comigo foi atípico e um acidente por vacilo meu. A estrada é perigosa sim, mas descer cautelosamente é tranquilo.

Os amigos

A presença dos meus amigos fez toda diferença. Foram no hospital, resolveram as burocracias, compraram e me deram remédios e lanches, me animaram, me acompanharam até o aeroporto e nitidamente sentiram minha falta quando parti.

Ter amigos é fundamental, mesmo para quem viaja sozinho e os faz pelo caminho.

Seguro

Viajar sem seguro é complicado. O seguro não é tão caro para um mochilão de um ou dois meses, portanto viaje com seguro. Se eu tivesse um seguro poderia ter sofrido cirurgia no dia seguinte e provavelmente continuaria minha viagem até o Peru.

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No Brasil

No hospital, por conta dos feriados de páscoa e pela falta de assistencialismo da UNIMED, ainda aguardei 11 dias internado para poder sofrer a cirurgia.

Depois ficou tudo bem e com poucos dias já estava inteiro de novo.

Hoje ostento uma placa de titânio junto ao osso, uma camisa rasgada de lembrança e uma cicatriz, que servirão para contar aos meus filhos e netos sobre a história de como sobrevivi à estrada mais perigosa do mundo!

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Obrigado pela leitura e boa viagem!

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